IndependĂȘncia: origem e chamado
- Ernesto AraĂșjo
- Sep 6, 2022
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A IndependĂȘncia Ă© a origem do Brasil. Origem nĂŁo significa apenas começo na linha do tempo. Significa criação do nosso espaço de vida nacional. Com ela somos permanentemente chamados a conversar e conviver, no fundo da alma e Ă margem do tempo. O ideal da IndependĂȘncia, somos hoje mais que nunca convocados a cumpri-lo.
Dom Pedro I, pai da pĂĄtria, o primeiro dos brasileiros, irmĂŁo e defensor perpĂ©tuo, nos acena aflito, dessa distĂąncia tĂŁo prĂłxima, atravĂ©s da floresta de esquecimento e crime. Apela a nĂłs, brasileiros bicentenĂĄrios, e exclama, mesmo suplica: âImitai-me!â (*) Imitai-me no sacrifĂcio pelo ideal de liberdade e grandeza.
Esse ideal define o nosso horizonte. Dele estamos, hoje, muito aquĂ©m. Refugiamo-nos num cantinho escuro de nĂłs mesmos, com um misto de medo, ignorĂąncia e despeito, e nos recusamos a preencher nosso prĂłprio destino. ComplacĂȘncia e mediocridade Ă© o que hoje nos define, dentro de casa e diante do mundo, nĂŁo a liberdade e a grandeza sonhadas na origem.
Dom Pedro comparou a vinda da famĂlia real para o Brasil Ă epopeia de VirgĂlio, a Eneida. Tal qual EnĂ©as, deixando Troia incendiada com o pai Anquises Ă s costas e o filho AscĂąnio pela mĂŁo, para, apĂłs aventurosa navegação, chegar ao LĂĄcio e plantar a semente da futura Roma, senhora do mundo, Dom JoĂŁo deixa Portugal invadido pela tirania napoleĂŽnica, com a mĂŁe Dona Maria I e o filho Pedro, para fundar um novo e verdadeiro impĂ©rio, âum Estado que deve um dia ser o primeiro do mundoâ, como escreveria o prĂłprio Dom Pedro. A origem do Brasil reproduz e retoma a origem de Roma. Nada menos. NĂŁo nascemos na modĂ©stia e pequenez. NĂŁo nascemos para ser apenas mais um paĂs em um globo de indiferenças. Em verdade, nenhuma nação nasce para ser apenas mais uma, porĂ©m hoje o globalismo, esse grande ladrĂŁo de sonhos e achacador de liberdades, vem atĂ© os braços de cada nação, invade o Ăntimo lar de cada pessoa, para roubar-nos a identidade, o ser profundo de povos e indivĂduos, esse mistĂ©rio frĂĄgil e insubstituĂvel, chave do sentido e mapa da felicidade. O Brasil, certamente, nĂŁo nasceu para apenas ocupar mais uma vaga qualquer no estacionamento cinzento de um mundo desencantado. NĂŁo nascemos para seguir escrupulosamente os âconsensos globaisâ nem para sermos funcionĂĄrios muito pragmĂĄticos da hegemonia chinesa.
Esse destino da mĂĄxima grandeza surgiu irmanado ao instinto de liberdade. NĂŁo liberdade no sentido burocrĂĄtico do bom funcionamento das instituiçÔes. Dessa tambĂ©m carecemos hoje, mas nĂŁo Ă© ela que desenha o nosso horizonte, e sim a liberdade idealizada e sonhada, que provĂ©m como um amor inefĂĄvel da altura transcendente e nos toca o coração, e que nos acompanha, como todo amor, atĂ© o ponto do sacrifĂcio Ășltimo, o sacrifĂcio do sangue, como o de Cristo na cruz: âPois foi para a liberdade que Cristo nos libertouâ, diz SĂŁo Paulo na epĂstola aos GĂĄlatas. âNĂŁo vos deixeis submeter novamente ao jugo da escravidĂŁo.â
No coração da fĂ© cristĂŁ reside o anseio e o amor pela liberdade. NĂŁo a justiça, nĂŁo a igualdade, nĂŁo a virtude, mas a liberdade. Do exercĂcio dessa liberdade Ă© que decorrem todas as virtudes e bens. E essa fĂ© da liberdade, do Deus libertador e do homem criado para a liberdade, escravizado mas chamado a reencontrĂĄ-la, essa fĂ© constitui a seiva da nossa origem na IndependĂȘncia. NĂŁo se trata da influĂȘncia maior ou menor da Igreja sobre as decisĂ”es de D. Pedro, mas da fĂ© que o imbuĂa e que faz seu gesto varonil ultrapassar de muito o terreno da polĂtica e servir de bĂȘnção iniciadora a todo um povo.
TranscendĂȘncia, sacrifĂcio, amor, liberdade, ideal de grandeza sĂŁo os verdadeiros ingredientes do Brasil original.
Grandeza e liberdade de quem? De um povo. Esse povo do qual fala com orgulho e emoção o primeiro Imperador, cuja voz sentimos vibrar atĂ© hoje, abafando o silĂȘncio da pragmĂĄtica indiferença, sentimos vibrar de fĂșria libertadora e carinho fraterno, filial, paternal, vibrar de amor e de esperança quando diz: âo povo brasileiro...â Nascemos como povo, nĂŁo como um conchavo da elite.
O povo contra a facção, contra a classe polĂtica e suas artimanhas, composiçÔes, perfĂdias, manipulação e ganĂąncia. Esse Ă© o nosso drama desde a IndependĂȘncia, sĂŁo as duas forças em disputa pela alma da nação. O povo para elevĂĄ-la ao seu destino inigualĂĄvel, a facção para destruĂ-la e locupletar-se de poder e torpeza sobre um corpo vazio de vida. Dom Pedro e o povo, de um lado. Do outro as Cortes de Lisboa e seus descendentes atĂ© hoje, a longa galeria de oligarquias, que durante o ImpĂ©rio ainda respeitavam os Imperadores e atĂ© certo ponto seguiam seus ideais fundadores, mas que desde a RepĂșblica vivem soltas e comprazidas, sempre urdindo novas regras e desregras para expandir seu poder, vendendo a alma a preço vil a quem quiser comprar.
Dessa batalha infinita vivemos hoje um momento crucial. Em sua magnĂfica carta a D. JoĂŁo VI, de 22 de setembro de 1822, quando contemplava o Brasil ainda no berço de recĂ©m-nascido, Dom Pedro, diante das ordens espĂșrias da facção, a oligarquia predadora da Ă©poca, proclamava com simplicidade e firmeza: âNĂłs, brasileiros livres (...) respondemos em duas palavras: âNĂŁo queremosâ.â
NĂŁo queremos a facção âhedionda, maquiavĂ©lica e pestĂferaâ, como a vituperava o Imperador. Imitemos Dom Pedro, inspirados pelo seu coração generoso que veio ao Brasil para o bicentenĂĄrio, talvez para mostrar-nos que nunca nos deixou e nunca nos deixarĂĄ, presença real do sĂmbolo de um amor poderoso pela pĂĄtria, e enfrentemos aquela facção maldita, atendamos ao apelo da origem de quem somos.
A IndependĂȘncia Ă© um chamado, um chamado trovejante de urgĂȘncia a nĂłs, brasileiros de hoje. Chamado para que sejamos povo, em busca da liberdade, compenetrados de um destino de grandeza, inspirados pelo herĂłi fundador, com fĂ© em Deus e prontos ao sacrifĂcio.
(*) Da carta de D. Pedro I a D. JoĂŁo VI, datada de 22 de setembro de 1822. Pela atenção a esse documento fundacional, e de um modo geral pelas ideias do presente texto sou tributĂĄrio do extraordinĂĄrio livro âOs Pilares da IndependĂȘncia do Brasilâ, de Evandro Fernandes de Pontes, editado pela FUNAG/Itamaraty durante minha gestĂŁo no MRE e de Roberto Goidanich na PresidĂȘncia da FUNAG.
Imagem: "A proclamação da IndependĂȘncia do Brasil", de François-RenĂ© Moreaux, 1844 (detalhe). Museu Imperial de PetrĂłpolis.
